31.12.13

Diário de Bordos - Mindelo, Cabo Verde, 31-12-2013 - II

- E o senhor, já foi ao estrangeiro? - pergunto ao senhor que gentilmente me levou de boleia hoje, quando resolvi ir conhecer um bocadinho os arredores.
- Estrangeiro, eu? Não. Só Portugal. Estive lá cinco anos.

Bom Ano Novo

2013 foi num ano difícil para mim. É uma sorte: 2014 não pode ser pior.

A todos os que me lêem desejo um bom Ano Novo, melhor do que 2013 e pior do que 2015.

Dez anos

O Don Vivo acaba de fazer dez anos.

E o pior é que não tem qualquer intenção de parar.

Diário de Bordos - Mindelo, Cabo Verde, 31-12-2013 (Post a posteriori)

251213 (24º 39' N 021º 06' W)


Pela primeira e espero que última vez na vida passei um bilhete de desembarque a mim próprio e desembarquei do S. Ando no mar para ganhar a vida (e porque sem o mar não tenho vida, mas isso são contas de outro rosário) não para brincar aos barquinhos.

Raramente tomei uma decisão com um timing tão bom [não é bem verdade, mas paciência. Agora não há nada a fazer]: saco em terra e menos de duas horas depois estava a bordo do N. Embarquei no pontão do combustível e estou, no momento em que escrevo estas linhas, a quase 400 milhas de Las Palmas. Faltam 600 para chegar ao meu lugar favorito: mil milhas do porto mais próximo; se possível sozinho. [Tivemos de desviar para o Mindelo, por razões técnicas].

No N. somos cinco, mas a tripulação é óptima e não custa muito. Pela primeira vez navego com uma vegan – ou pior, não sei: G., uma fotógrafa italiana que fazia bateau-stop em Las Palmas só come fruta e legumes. Creio que nem arroz come - . Mas a verdade é que a dieta parece não lhe fazer mal, muito antes pelo contrário.

E pela primeira vez em muito tempo navego num barco onde não cozinho e como bem.

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Ontem tive de ir ao hélice cortar uma rede. Uma hora de trabalho e fiquei exausto. Tenho de chegar a um acordo com o meu corpo quanto a essa história da idade. Estava mar, eu sei. Mas bolas, fiquei derreado.

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O almoço de Natal foi uma magnífica cataplana de atum. F. é um excelente cozinheiro. Pode não ser grande marinheiro mas é simpático [nem sempre, mas quando o é é]. N. é uma espécie de roulotte flutuante, com dessalinizador (que se avariou dois dias depois de sairmos de Las Palmas), micro-ondas, duas televisões (duas) e – pormenor que me toca particularmente - máquina Nespresso.

No S. todas essas coisas faziam sentido (não tinha Nespresso, seja Deus louvado). Mas num Bénéteau 50 não fazem. Enfim, fazem: isto é uma roulotte.

Estou a ser injusto. O barco é bom, rápido, confortável e passa bem na vaga. Um dia perderei o meu preconceito anti-Bénéteau. Só espero que não seja amanhã a véspera desse dia.

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Hoje pescámos um mahi-mahi. É pequenino e sugeri que o deitássemos fora. Não fui ouvido: vai para a panela (não pode ir para o forno porque só temos uma garrafa de gás e temos de a poupar). Dá para cinco se três não comerem, como no Constantino, Guardador de Vacas e de Sonhos; e dado que é pouco provável G. prove (apesar de ter provado o atum cru, a rapariga não é fundamentalista) já só é preciso que sejam dois a não comer.

30.12.13

Cabo Verde [post a posteriori]

Pela segunda vez vou a Cabo Verde. Enfim, segunda vez é de mais: a primeira foram algumas horas num aeroporto, a caminho do Brasil.

Só me lembro da rapariga do bar, uma jovem com um corpo de tigreza que tinha ao peito um crachat a dizer "Temporário". O corpo da miúda era realmente magnífico e o olhar dos homens sentados ao balcão seguia-a como fios de iô-iôs. Eu pensava no Temporário e perguntava-me se era uma promessa ou um reminder.

Desta vez vai ser diferente. Vamos ficar pelo menos dois dias no Mindelo [serão quatro].

Ninguém, nem eu, imagina a pouca vontade que tenho de passar uns dias no Mindelo, por muito bom que aquilo seja [é muito melhor do que tudo o que eu esperava]. Ou seja onde for que não seja o mar, e longe, muito longe do porto mais próximo. [Não é completamente verdade. Estou encantado com isto e contente por ter conhecido. Mas lá que gostava de estar no mar gostava.]


Breve tratado de marinharia para uso das novas gerações

Rizar: riza-se para andar mais depressa.

Coletes: os coletes são como as camisas-de-vénus - usam-se imperativamente quando são precisos, e só quando são precisos. Mais importante do que pôr coletes para inglês ver é aprender a andar num barco.

Velas: um veleiro deve ter os panos que o tempo pede; nem mais nem menos. Mas se for preciso escolher uma dessas alternativas, mais vale ter a mais do que a menos. É possível tirar força a uma vela, mas não é possível pôr força onde não há panos.

E é essencial saber mareá-las, porra!

Instrumentos: o GPS, o radar, o AIS são complementos dos nossos conhecimentos. Não são substitutos da nossa ignorância.

Básicos: as bases são importantes. É preciso saber a diferença entre o Norte magnético e o verdadeiro, o que é o abatimento, a diferença entre proa e rumo, o que é o vento real e o aparente, conhecer a escala de Beaufort e por aí fora.

Quartos: não se deve ler, ouvir música nem (ligeira tosse embaraçada) escrever quando se está de quarto em cima. Estar de quarto não é estar num barco, é estar com um barco.

Centro vélico e centro de deriva: pelo menos saber que existem e o que são. É um mínimo.

Bolas, não é complicado. Basta pensar que um barco não é uma roulotte nem uma mobile home. É um barco e está no mar.

Diário de Bordos - Mindelo, Cabo Verde, 30-12-2013

O que nasce torto tarde ou nunca se endireita. Esta travessia começou num barco soberbo e montes de atraso; passei-me um bilhete de desembarque em Las Palmas - pela primeira e espero que última vez da minha vida - e embarquei logo a seguir num barco que estava de saída.

Não é bem um barco, é um tupperware, mas anda bem. O armador e skipper é um marinheiro de marina, que quando é simpático é adorável mas que nem sempre é simpático e adorável. Uma parte de mim sabe que estou a pagar a magnífica travessia de 2012 no D. H.; a outra que o tempo de mudar de vida chegou, ponto. Felizmente a vida nova está à vista. Tem montes de nomes: chama-se B., HS, Make Fast Yachting and Events, Palma de Maiorca, Antigua, estabilidade, etc.

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O meu pai dizia-me para nunca ir a Cabo Verde, que não sairia. Tinha razão: pelo menos o Mindelo é fascinante, intrigante, interessante, apaixonante. Ontem foi dia de chegada e a tripulação decidiu fazer uma incursão nocturna pela cidade. Fomos ao Café Lisboa e a outros sítios que a memória, por razões que não compreendo, não registou. É a mais europeia daqs cidades africanas que conheço: tem o bom de umas e das outras, e não tem os defeitos.

Vamos cá passar o fim do ano e saímos no dia 1. Uma boa maneira de acabar um ano difícil e começar um promissor.


Mar, vista

O mar é o mesmo, mas quando estás no topo da vaga vês uma coisa e na cava outra.

Mar

Inúmeras fogueiras ardem no mar.. Restos de um incêndio que se ateou nas penas de um pelicano desajeitado e se propagou pelas estrelas.

O mar não apaga incêndios; tão-pouco os ateia. O fogo é-lhe indiferente; não é o seu negócio. O negócio do mar é a verdade.




22.12.13

Marinheiro

Sei fazer muitas coisas, é certo; mas só sei ser uma.

21.12.13

Mar, marinheiro, humildade, medo

Não se pode tirar o mar de um marinheiro, tal como não se pode pôr mar em quem não o é. Ou:

O mar não entra em quem não é marinheiro, tal como não sai de quem o é.

Não se pode aprender a ser marinheiro, embora não se possa ser marinheiro sem aprender.

A ignorância nunca é humilde, é arrogante. E se há quem sabe lidar com a arrogância é o mar:  anda há milénios a acolhê-la.  Ou:

Um marinheiro sem humildade é como um mar sem vento. Não dura muito.

O medo está para a humildade como um telhado de zinco para um campo de milho: são muitas vezes vistos juntos, mas não têm nada a ver um com o outro.

Não se deve confundir medo com humildade tal como não se deve confundir o cu com as calças.

A humildade é dialogante; o medo é surdo e fala sozinho.

Quem não tem medo é idiota, quem não o enfrenta cobarde.

Culpa, responsabilidade

Nietzsche enganou-se, é terrível, no que respeita à morte de deus; mas foi a única coisa em que se enganou. O século XIX - século optimista s'il en fut - tentou arranjar explicações para tudo o que nos acontece ou na sociedade, ou no inconsciente, ou na evolução. Nietzsche foi o primeiro a ver que os culpados somos nós.

Ou seja, não somos culpados de nada. Somos, isso sim, responsáveis.

Foram precisas duas guerras, não sei quantas ditaduras, milhões de mortos e muitos anos para que começássemos a perceber isto.

20.12.13

Fácil, difícil

É tão fácil ser feliz. Porque é tão difícil?

Sozinho

As tempestades aguentam-se ao largo e sozinho; ou num beliche e sozinho; seja onde for, mas sozinho. Sempre.

Receita para fazer um marinheiro

Pegue-se num homem inquieto, junte-se-lhe uma infinita capacidade de suportar o infinito, uma grande falta de respeito por tudo menos pelo material que o mantém nesse infinito, e por todos menos os que são como ele, uma ilimitada confiança em si mesmo acompanhada por uma igualmente ilimitada certeza de que nada é e nada vale face ao infinito que gentilmente o suporta. Tempere-se com a permanente certeza de que o dinheiro é como as marés, mas menos previsível. Encha-se-lhe o corpo de paciência se é impaciente e de impaciência caso contrário. Perto do fim acrescente-se-lhe uma dose de desejo profunda como o azul e ilimitada como a inquietação. Regue-se com bastante curiosidade e leve-se a cozer em tempo, muito tempo.

Embarque-se numa embarcação de madeira, aço, alumínio ou fibra de vidro, com ou sem velas, com ou sem motores, com ou sem nada excepto a capacidade de flutuar e de o levar para onde ele quer ir.

Sirva-se acompanhado por uma total incompreensão de quem não é marinheiro.

Receita para fazer uma noite - Lulas recheadas com queijo feta

Lulas recheadas com queijo feta

Vamos pegar no queijo e enchê-lo de salsa e um bocadinho de coentros e pimentos e os tentáculos delas tudo muito picado e no fim aneth e depois rechear as lulas e metê-las no forno, minha querida. E beber um bom vinho branco e olhar-nos e falarmos e fazer tudo o que se segue aos olhares e às palavras. Estas coisas têm uma ordem; é preciso começar pelo princípio e acabar no fim, as palavras vêm no meio, as peles no fim, as lulas recheadas com queijo feta no princípio, como um comboio que um miúdo vê descarrilar, que bom é descarrilar não há palavra mais bonita. Vamos descarrilar? Vamos jantar-nos? Vamos cozinhar-nos?

Seja onde for, não precisa de ser na Grécia, pode ser onde quisermos, desde que haja lulas e queijo feta e vontade. E vinho branco. E duas peles que se querem, dois pares de mãos que se procuram, dois pares de olhos, tudo a dobrar que o desejo não se dá bem consigo próprio.

18.12.13

Noite, porta-aviões

A noite avança como um porta-aviões vazio.

Sem ti, paraíso

Sem ti é uma experiência que faz contigo passar por uma estadia no paraíso.

Noite, cidade

Lua cheia, um nome num paredão, um óptimo jantar num restaurante chamado 7 Viejas, o mar o mar o mar.

A distância, uma brisa ligeira que para pouco mais serve do que manter os pavilhões dos navios no ar, a noite clara como o futuro: mistura promissora de luz e dor da qual a luz é mais e a dor menos.

Uma embarcação linda numa marina enorme, apinhada, uma palavra que me foge e regressa sorrateira um Gin bebido como se fosse Genever uma vida vivida como se fosse vida um amor fingido como se fosse amor uma noite fodida como se fosse noite, eterna.

Um seio e a mão que lhe toca, metade de cada um, metade de mim e metade de ti e metade da noite e da vida e do tempo do passado (como se tempo e passado fossem duas coisas diferentes. Não são).

A calma que antecede o temporal é um mito, a calma que se lhe segue outro, a calma é um mito. Não há calma, há tempestades e ausência de tempestades. E noites de lua cheia nas quais a distância se transforma num livro num disco num filme num copo de gin exercício da memória assim: uma corda bamba. Uma rapariga na corda bamba. Um homem olha para elas, a rapariga e a corda e pergunta-se qual romperá primeiro. Por baixo uma cidade que existe para ser partilhada uma cidade que só aceita visões aos pares uma cidade na qual passear sozinho não faz sentido porque ela não conhece o sentido da palavra sozinho, uma cidade.

Uma cidade na qual a solidão dói como se fosse memória.

A única vantagem de se viajar sem parar é não haver muitas cidades assim.

As cidades não deviam doer.

É preciso imaginar uma autoestrada de luz no mar e essa autoestrada vem da Lua e vai para sempre. É preciso imaginar uma rosa magoada, um lírio ferido, uma orquídea modesta.

É preciso imaginar uma palavra a escorregar num parque infantil: é assim que elas vêm ter connosco, uma a uma. É assim que o tempo se afasta de nós, gota a gota.

É preciso imaginar a pele como se fosse sofrimento: viva.

É preciso imaginar que a  minha casa és tu e que sem ti vivo na rua, na lua cheia, na brisa que faz as bandeiras flutuar como se nos apontassem uma direcção, no restaurante com mais gente da rua, no táxi que me traz para bordo, na música que agora oiço como se estivesses aqui, como se aqui fosse uma ilha nas Cíclades, como se fosse um girassol. A música deve ser um girassol, um giraluna, uma voz, uma nuvem através da qual a lua nos vem dizer boa noite.

Boa noite. Boa cidade.

"Oiça um bom conselho / eu lhe dou de graça..."

"There but for the"

Ali Smith

Urgentemente.

Diário de Bordos - Las Palmas, Ilhas Canárias, Espanha, 18-12-2013

Não foram a falta de vento e a rapidez com que o tempo passou – cinco dias que passaram como se fossem dois – e a viagem teria sido perfeita. Espero que as duas semanas e meia ou três que aí vêm se pareçam realmente com duas semanas e meia ou três, e não passem a correr, como se fosse uma, como se o tempo não existisse, como se o mar e o tempo fossem um só. Estamos no mar, não no tempo.

O calor chegou, finalmente. Pouco a pouco. Começa-se por não se pôr o cachecol; depois a camisola interior feita num tecido super-quente; seguem-se-lhes as calças de mar, as botas, o segundo par de meias e de repente está-se como estou agora, em calções. Às vezes há uma marcha atrás, como ontem à noite, tivemos um ameaço de mau tempo.

Mas não passou disso: um ameaço. Venceu gorro, dois pares de meias e casaco de quarto, mas ficou-se por aí. Nada que se pareça com a viagem no C., quatro dias de porrada, de bolina cerrada com trinta nós de vento.

Quando saímos de Cascais estava bom tempo, mas um bocadinho a sul de Sagres começou o badanal. J., o armador perguntara-me quanto é que eu cobrava, eu disse-lhe e ele respondeu que não, que isso era salário de skipper e eu seria marinheiro, propunha-me x. Disse-lhe que sim, claro. Mais vale ganhar pouco do que nada, e uma semana de marinheiro não faz mal a ninguém.

Ao fim de dois dias de temporal disse-me Luís, o skipper és tu, e eu pago-te como skipper os dias todos desde que saímos de Cascais. Foi a primeira e última vez que isto me aconteceu. Ficámos amigos. Ele não estava habituado a temporais, e ainda hoje se refere àqueles dias como os piores da vida dele.

Amanhã chegamos a Las Palmas, se nada acontecer daqui lá. Faltam menos de vinte e quatro horas. Um piscar de olhos, um adeus rápido num aeroporto, um olá de quem já se amou muito e não se ama.



Sirius faz-se esperar, como sempre. Já Capella vai alta, logo seguida dos gémeos viajantes, os padroeiros dos marinheiros Castor e Pólux; Oríon está todo no ar; Sirius ainda rasa a água. Coisa de princesa, coisa de raínha, coisa da estrela mais brilhante do céu depois do sol.


Chegámos a Las Palmas e precipitamo-nos para os computadores. Modernices: antigamente teríamos irdo a correr para a primeira taberna.

Paradoxos (bis repetita)

Vidas que se usam não se gastam. São sempre novas. Só se gastam e envelhecem as que não se usam.

Das revoltas inúteis

Que as coisas são como são e não como nós queremos que elas sejam é um facto incontestável. E as pessoas, pode e deve acrescentar-se.

Mas isso não significa que não possamos ou devamos reagir perante a iniquidade, a maldade, a injustiça, a falta de ética; e inclusivamente tentar mudar as coisas (as pessoas é praticamente impossível; ou elas mudam de per si ou não há força no mundo capaz de as fazer mudar).
Claro que devemos.

O que está mal, o que sentimos como sendo errado deve ser combatido e criticado, não deve ser aceite. Mesmo quando se sabe, tantas vezes, que vamos acabar por ter de aceitar; não porque queremos, ou nos conformamos mesmo sem querer, mas porque as coisas são o que são; e as pessoas também.

13.12.13

Estupidez e outras coisas

Por no passado ter dado demasiados créditos à estupidez, quiçá, hoje dou de menos.

A verdade é que deixei de acreditar na estupidez como razão para a maioria das acções dos homens (nunca acreditei: na verdade, estupidez era um nome genérico que eu dava a comportamentos, atitudes, reacções que me desagradavam). Mas aquilo - ou melhor, o vasto conjunto de coisas - que substituíram a estupidez é bem pior.

12.12.13

Re-edição parcial (e desonesta)

Pena de morte é um oxímoro.

Dizer, continuar

Começo por dizer-te. Seria preciso começar por dizer-te. Deixa-me começar por dizer-te.

Estamos sempre a começar por dizer, mas nunca continuamos a dizer: continuo a dizer-te... Seria preciso continuar a dizer-te... Deixa-me continuar a dizer-te...

Deus, Sócrates et al.

Deus não é uma questão com a qual se deva perder muito tempo. É uma questão menor (enfim, não é; mas devia ser). Porém duas coisas são certas: a primeira é que cabe a quem acredita na sua existência demonstrar que ele existe, e não a quem não acredita demonstrar o contrário. A segunda é que se António Costa chegar a primeiro-ministro fica definitivamente demonstrada a não existência de deus. Ou pelo menos o seu profundo desprezo pelos portugueses.

Enfim, perdoem-me a redundância. Tudo coisas já provadas desde que Sócrates foi eleito e re-eleito. E desde que Salazar foi para um governo; e desde que o D. Sebastião nasceu...

Desde sempre, afinal.

Taras perdidas

As únicas taras que se devem lamentar são as taras perdidas.

Bom senso, arrogância

A misantropia releva do bom-senso, que é por natureza humilde; não da arrogância. Mas é difícil separar um da outra, reconheço.

Objectivos

Ser misantropo sem ser um idiota arrogante: eis um objectivo digno.

Poderia; ou: monólogo dialogado

Pronto, está bem, ganhaste. Eu troco uma vida de mar usada por uma vida tout court, por muito gasta que esteja. Enfim, não sei se as vidas se gastam; usam-se, isso sim. Mas gastar... Não sei. Uma vida de cinquenta anos pode ser tão nova como uma de vinte ou trinta. Ou o oposto: uma de vinte ser tão velha como uma de cinquenta. Talvez. Mas não é de vidas velhas que falamos, é delas novas, por muito usadas que estejam. Não, claro que não. Uma coisa pode ser nova e estar usada: um vinho que passou muito tempo numa estante, um charuto que ninguém tirou da caixa, uma vontade, um desejo, uma vida. As vidas só se gastam quando não se usam. E eu já vivi fora do mar, já vivi longe dele, já vivi ao lado dele. Mas nunca vivi sem o mar, e é isso que agora te digo posso fazer.

Poderia.


Dar a volta

Família

De Zorn passa-se a Bartók, mas é só para ir ao Cecil, daqui a bocadinho. É tudo a mesma família.

Diário de Bordos - Gibraltar, Reino Unido, 13-12-2013

Fui finalmente jantar ao restaurante judeu de Gibraltar. Chama-se Tamid, o que significa Para Sempre em hebreu. É um nome bonito para um restaurante, Para Sempre (as maiúsculas são minhas). Uma vez amei uma senhora a quem dizia amo-te desde e para sempre. É parcialmente verdade: o verbo amar não tem passado, só tem presente e futuro.

Amamos para sempre quem amámos, essa é que essa. E se não for devia ser.

O restaurante é óptimo, impecável, maravilhoso.



Comi um hummous que não é tão bom como o meu (tem demasiado alho), um borrego que é melhor do que qualquer borrego que jamais comi, e saí do restaurante com uma indomável vontade de ouvir música klezmer.

O que me levou, por vias travessas, a isto (não liguem ao Lou Reed e Laurie Anderson do título e oiçam o Marc Ribot, o Joey Baron e o Zorn, claro):



A vida é tão simples e nós perdemos tanto tempo a tentar complicá-la... E o pior é que não conseguimos: a simplicidade acaba sempre por vencer. Ou a verdade, se preferirem: um bom whisky, um jantar, um corpo com sentido e com sentidos. E um livro ou dois, uma boa música, um bocadinho de mar e muito vento. Um doble corona Vega Robaina comprado a um candongueiro no Panamá. E sol, que chuva nem no whisky. Excepto se houver uma lareira por perto e um bom cozido, claro. E boa companhia.

Era isto que eu queria dizer: passamos demasiado tempo a complicar o tempo que temos. Hoje saiu-me na rifa um restaurante judeu (sefardita, para quem esses pormenores interessarem), um bom whisky e boa música.

Hallelujah.








10.12.13

Terra perdida

Descobertas recentes

Tu e a música sacra

Não sou crente, mas gosto muito de música sacra. Não por causa do optimismo - inegável - mas por causa da alegria. A música sacra é a música mais alegre que se pode ouvir, pelo menos até à Renascença

Exagero, eu sei. Onde deixar-te, se ocupar o teu lugar com a música sacra?

Escolhas múltiplas

O vento na marina deve andar à volta dos quarenta nós; os brandais vibram, os cabos gemem, o barco adorna amarrado ao cais. Tenho frio, oiço as Vésperas de Rachmaninov, bebo whisky e tento, sobretudo, perceber como se pode ser feliz e infeliz ao mesmo tempo.

Nunca compreenderei. Vento, frio, whisky, música divina e tristezas infernais não se compreendem. Vivem-se, e já é uma sorte.

"Oiça um bom conselho / eu lhe dou de graça"

Isto, sempre, em caso de dúvida ou, melhor ainda, de certezas.

Palavras, à rola

No mar há uma diferença entre pairar e derivar. Pairar é uma paragem voluntária; derivar é involuntário. Um sinónimo de derivar, do qual gosto muito é ir à rola; ou ir à rola do mar.

Não sei qual o termo que se aplica às palavras que vão à rola. À rola de quê, para começar?

Diário de Bordos - Gibraltar, Reino Unido, 11-12-2013

Estamos em Gibraltar. O bote anda, given the right stimulus. E é bom de leme, coisa não despicienda.

A Gibraltar que eu conheci era uma mulher espanhola com mamas até ao céu; hoje é uma mulher inglesa, comerciante e imóvel. A livraria estava fechada e o Angry Friar aberto. Esta combinação não é incomum, por muito lamentável que seja.

De resto é tudo igual: perfumes, tabaco, bebidas, electrónica. Electrónica, bebidas, perfumes, tabaco. Tabaco, perfumes, electrónica, bebidas. E assim por diante até ao Angry Friar, um dos pubs mais antigos de Gibraltar.

Devíamos poder desligar a memória como se desliga uma televisão.


Barcelona, 2013

 
 

Barcelona, 2013

 
 
 
 

Dançar

É uma da manhã. Tens o vento pela alheta de bombordo. Força cinco, talvez seis. A noite está fria, mas suportável. Na amura de bombordo tens a lua em quarto crescente, já baixa; serve-te de guia, e como vais para Oeste podes mantê-la como referência um bom momento.

Tens o barco na mão: desligaste o piloto automático e governas de pé, como gostas.

De repente apercebes-te de que estás a dançar com o barco. O mar é a tua pista de dança. A música é a do casco a cada surf, a das vagas que rebentam ao teu lado, a do vento nos brandais, o ocasional bater da valuma. Tens uma discoteca só para ti, uma discoteca quase sem barulho e com um número incalculável de luzes fracas, longínquas; têm nome, essas luzes: Sirius, Cão Maior, Ursa Maior, Oríon, Gémeos, Polar, Ursa Menor.

É esta a única coisa que sabes dançar: força seis pela alheta, oito nós no fundo, um barco na mão como se fosse uma senhora ligeira e sensível.

Um bando de golfinhos vem ver-te. Brinca com o barco. Deles só vês os traços fosforecentes que deixam na água. Normalmente não prestas muita atenção aos golfinhos, já viste mais do que a tua parte. Desta vez olhas. Ficam contigo muito tempo, as duas horas que faltavam para terminar o teu quarto.

Devias fazer com o sofrimento o que fazes normalmente com os golfinhos: não lhe ligar. Também já tiveste a tua parte dele. Mas a dor persegue-te como esse bando que se entretem com o barco, com a esteira que deixas na água, com a tua proa, e do qual só vês as linhas brancas, fosforecentes, velozes como torpedos.

Ao longe vês as luzes da costa. As cidades seguem-se umas às outras sem interrupção. Sabes que amanhã chegarás a uma dessas cidades, da qual não vês as luzes ainda; mas sabes que não serão muito diferentes.

Nada é nunca diferente. Excepto tu, o mar e uma embarcação de vela quando descobrem que estão a dançar. E que afinal sabes dançar.

Seduzir, des-seduzir

É melhor ter de seduzir alguém todos os dias do que ter de des-seduzir. A sedução pode ou não funcionar; des-seduzir acaba inevitavelmente por conseguir-se.

7.12.13

Sitges - Marigot Bay (St. Martin)

ATD SITGES - 071213/1300
ETA GIBRALTAR - 101213/1500


"Next morning, at daylight, the Narcissus went to sea."

Um post que devia ser reeditado muito mais vezes. Esta é a terceira vez este ano que uma viagem o merece; foi um ano difícil. Vai acabar no mar: chegaremos a St. Martin em princípios de Janeiro. Pode ser que seja um bom auspício. É.


Next morning, at daylight, the Narcissus went to sea.

A slight haze blurred the horizon. Outside the harbour the measureless expanse of smooth water lay sparkling like a floor of jewels, and as empty as the sky. The short black tug gave a pluck to windward, in the usual way, then let go the rope, and hovered for a moment on the quarter with her engines stopped; while the slim, long hull of the ship moved ahead slowly under lower top-sails. The loose upper canvas blew out in the breeze with soft round contours, resembling small white clouds snared in the maze of ropes. Then the sheets were hauled home, the yards hoisted, and the ship became a high and lonely pyramid, gliding, all shining and white, through the sunlit mist. The tug turned short round and went away towards land. Twenty-six pairs of eyes watched her low broad stern crawling languidly over the beating water with fierce hurry. She resembled an enormous and aquatic blackbeetle, surprised by the light, overwhelmed by the sunshine, trying to escape with ineffectual effort into the distant gloom of the land. She left a lingering smudge of smoke on the sky, and two vanishing trails of foam on the water. On the place where she had stopped a round black patch of soot remained undulating on the swell -- an unclean mark of the creature's rest.

The Narcissus left alone, heading south, seemed to stand resplendent and still upon the restless sea, under the moving sun. Flakes of foam swept past her sides; the water struck her with flashing blows; the land glided away, slowly fading; a few birds screamed on motionless wings over the swaying mastheads. But soon the land disappeared, the birds went away; and to the west the pointed sail of an Arab dhow running for Bombay, rose triangular and upright above the sharp edge of the horizon, lingered, and vanished like an illusion. Then the ship's wake, long and straight, stretched itself out through a day of immense solitude. The setting sun, burning on the level of the water, flamed crimson below the blackness of heavy rain clouds. The sunset squall, coming up from behind, dissolved itself into the short deluge of a hissing shower. It left the ship glistening from trucks to waterline, and with darkened sails. She ran easily before a fair monsoon, with her decks cleared for the night; and, moving along with her, was heard the sustained and monotonous swishing of the waves, mingled with the low whispers of men mustered aft for the setting of watches; the short plaint of some block aloft; or, now and then, a loud sigh of wind.
 

5.12.13

"Oiça um bom conselho / eu lhe dou de graça..."

Acabo de descobrir um cantor chamado Piers Faccini, que aconselho a todos os que gostam de canções bonitas, sensíveis, com letras emocionantes.

Modo largada

Uma espécie de exaltação. Ando em terra e já não estou em terra, olho para o mar e só vejo o vento, olho para hoje e vejo amanhã e depois e depois. Estou em Sitges e não estou: estou no mar e em Gibraltar.

Outra coisa qualquer

Não há amor sem continuidade, persistência, teimosia, sem a ideia de que é aquela pessoa ou ninguém, ou nada.

Ou há, mas não se chama amor; chama-se outra coisa qualquer.

4.12.13

A outrance

Pago os anos durante os quais não fui eu sendo eu à outrance.

Pequenos anúncios

Homem, 42, impotente, incapaz de fazer amigos procura mulher ninfomaníaca.

Pequenos anúncios

Homem, 42, desempregado procura mulher com emprego estável. Não sabe cozinhar nem passar o aspirador mas sabe lidar com mulheres a dias.

Pequenos anúncios

Homem, 42, feio e pobre procura mulher rica e bonita para explorar complementaridades.

Pequenos anúncios

Homem, 42, com um grande futuro pela frente procura mulher que goste de café.

Pequenos anúncios

Homem, 42 anos, impaciente procura mulher farta de esperar para juntos construirem o futuro, hoje.

Diário de Bordos - Sitges, Catalunha, Espanha, 04-12-2013

Ontem na lista de coisas que poderiam impedir-nos de sair hoje escrevi: tsunami, tremor de terra ou explosão solar inesperada. Esqueci-me, claro, de mencionar os bancos portugueses. Em particular um que não é bem um banco, é mais uma caixa de família (e do regime).

Aquilo que esperávamos chegou, mas o banco acha que pode fazer com a nossa massa o que quer e lhe apetece.

(E pode, infelizmente. Queixei-me várias vezes ao Banco de Portugal de comportamentos que considerava abusivos da parte do meu banco, quando ainda tinha uma conta bancária. Mais valia ter-me queixado ao circo Paiazzo.)

De maneira que a saída não é hoje. É amanhã, ou quando o banco decidir que podemos sair.

O meu léxico de palavrões e insultos é rico, contrariamente ao vocabulário digamos geral, bastante limitado. Mas não consigo encontrar palavras que exprimam inteiramente o que sinto e penso cada vez que tenho de lidar com a banca portuguesa.

Sitges, 2013

 

Eva J., Sitges, 2013

 
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Parónimos

Uma pessoa diz relação, a outra entende sexo. Ou diz sexo e o interlocutor lê relação. Não se poderia talvez procurar duas palavras muito mais diferentes uma da outra do que estas duas para se acabar de vez com a confusão?

Lizarran, Sitges, 2013

 
 
 
 

3.12.13

Estrelas, lugares

Gémeos, Oríon, Sirius (Cão Maior - é a minha estrela favorita, a mais brilhante depois do Sol), a Polar (Ursa Menor) e a Ursa Maior: as estrelas e constelações que me vão acompanhar nos próximos meses estão no seu lugar.

Ou sou eu que estou, não sei.

Mudez, silêncio

A mudez está para o silêncio como uma mulher feia para uma bonita: o resultado é o mesmo, o caminho diferente.

Mar nosso de cada um

Devia ser possível explicar a quem nunca esteve no mar o que ele é, e a quem já lá esteve o que ele não é.

Princípio, fim

Comecemos pelo princípio: tu não és o princípio. Comecemos pelo fim: tu és o fim.

Sitges, 2013

 
 
 
 
 

Sitges, 2013

 
 
 
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Sitges, 2013

 
 
 

Ângelo O., Sitges, 2013

 

Sitges, 2013

 
 
 
 

Sitges, 2013

 
 
 
 

Diário de Bordos - Sitges, Catalunha, Espanha, 03-12-2013 - II

O café La Granja de Sitges fica na Calle Mayor e tem a melhor tortilla de patatas que jamais comi (incluo as que P. nos fazia a caminho de Palma e fica ex aequo com a que comi em Antigua, feita pela chef de um super-iate cuja tripulação levei um dia a Nonsuch Bay).

Sitges tem montes de sítios assim, faz-me pensar em Brighton cada minuto que aqui estou. Graças a deus vou-me embora amanhã. Não por estar farto de terra, mas por precisar de mar.

Não gostaria de viver na Catalunha. Suporto mal o independentismo. Hoje vi na montra de uma sapataria umas sapatilhas cuja marca era Catalunya Freedom. Por mais que faça não consigo ver sombra de falta de liberdade na Catalunha.

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A temperatura subiu bastante, e creio que vai manter-se assim nos próximos dias. Até Gibraltar vamos ter pouco vento, se as previsões se confirmarem. Mas ao menos não fará o frio que tivemos até ontem, paralisante.

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No painel de anúncios do café um senhor chamado Padhi anuncia aulas de Ecologia Emocional. Emoções, música e voz. Deve saber do que fala, porque é pedagogo musical e Máster en Ecologia Emocional.

O campo de destroços em que a minha paisagem emocional se transformou aprova incondicionalmente, e lamenta não poder inscrever-se já num curso.

Sitges, 2013




Diário de Bordos - Sitges, Catalunha, Espanha, 03-12-2013

Já o posso dizer: amanhã largamos, salvo tremor de terra, tsunami ou explosão solar inesperada.

Sitges é encantadora, uma espécie de Brighton mediterrânica (em todos os sentidos), mas o SYNCHRONICITY quer largar, e o que barco quer Deus quer.

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Amanhã começa o aniversário de três dias particularmente negros na minha história recente: daquele em que tomei uma das piores decisões da minha vida àquele em que ela se concretizou.

Vou passá-los no mar, juntamente com o Natal e o décimo aniversário do Don Vivo. Não sei bem o que fazer disto tudo, mas o mar, esse grande filtro aglutinador e purificador, o mais eficaz de todos os detectores de mentiras saberá.

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A época de inverno está preenchida; e as outras todas que aí vêm também, inch'Allah. Esta espécie de tristeza optimista em que me encontro é mais do que justificada: amanhã será melhor do que hoje, tal como hoje é melhor do que ontem.

Até em S. Luís vou gostar de estar, quando lá chegar!

Solidões, cheiros

Taxonomia da solidão:

a) Solidão de puta, cheira mal;
b) Solidão de frade, não tem cheiro;
c) Solidão de sábio, cheira bem.

1.12.13

Amar, ser amado

Amar é muito mais interessante, estimulante, enriquecedor do que ser amado.

E muito mais seguro, sobretudo.

Ver

Vejo-te com os mesmos olhos e com outro olhar.

Paciência et al.

Todos os dias peço à vida que me dê paciência, mas tudo o que ela me manda é vinho e whisky.

Super-herói

Se o sofrimento é preciso para nos tornar mais fortes porque é que eu não sou uma mistura de Super Homem, Batman e Lone Ranger?

Paráfrase

Il est incroyable que l'existence d'une quantité de fantasmes n'ait jamais fait renoncer personne à chercher un autre.

Fantasmas, retrato

Como seria definido por um convénio de fantasmas?

Alfabeto, vida

Amor escreve-se com as letras todas de um dos alfabetos. O da vida.

Justiça

Só quem fez erros gigantescos na vida devia ser juiz.

(Não haveria juizes. Não por falta de erros, mas por falta de vontades).

Vésperas, vésperas

Vésperas de uma data importante. Oiço as Vésperas de Rachmaninov. Não são as mesmas, claro. Mas a música é.